quarta-feira, 26 de maio de 2010

DISFARCE DE DEUS

Tua catastrófica e plácida beleza aterra os homens
e paralisa a memória dos olhos, dos espelhos e das águas.
Depois que aconteceste (quem foi que te pode acontecer?),
na terra as flores se desconheceram e deixaram de ser,
no céu as estrelas tombam de fascinação e de insônia pálida.

Um momento da tua corporal iluminação
- fugitivo das muralhas da eternidade –
lava o preclaro noturno céu das manhãs pedrentas;
a passagem astral dos teus pés acorda o chão,
e tu desmanchas os caminhos das horas, e um teu gesto esculpe os rostos da verdade.

Vê estes pássaros imóveis e sem canto;
vê este mar que naufragou na tua praia;
ouve o amoroso pensamento que os teus vestidos enche de seu espanto;
sente o gosto deste raio de sol que se ofuscou na alva luz da tua pele;
contempla o universo cúmplice que do teu núcleo raia;
mede os périplos de assombros e descobrimentos que tuas mãos sugerem;
entra depois os neutros olhos nas furnas de treva dos cegos:
terás pena dos que não adivinharam o novo disfarce de Deus,
pena maior dos que reconheceram os abismos de impossível que suas fechadas mãos puseram
na argila, na relva, no ar, nas árvores, nos sons e nos silêncios
das vidas em que velejou de leve, por um momento, a tua sombra avulsa.


Abgar Renault
Obra Poética – 1.990 -

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