segunda-feira, 28 de junho de 2010

quinta-feira, 17 de junho de 2010

MIGUEL REALE


Filósofo, jurista, educador e poeta brasileiro, Miguel Reale nasceu em São Bento do Sapucaí, São Paulo, em 6 de novembro de 1910 e faleceu em São Paulo, em 14 de abril de 2006.
Foi dos líderes do integralismo no Brasil.
Conhecido como formulador de Teoria Tridimensional do Direito, onde a tríade fato, valor e norma jurídica compõe o conceito de Direito. Em linhas muito simples, um determinado fato é desvalorado ou valorado através de uma norma jurídica. Autor, entre outros, de Filosofia do Direito e de Lições Preliminares do Direito, obras clássicas do pensamento filosófico-jurídico brasileiro.
Escreveu livros sobre; Filosofia, Direito,Ciência Política e Teoria do Estado,Poesia e Prosa, Biografias e outros. Seu legado literário é extenso e valioso para a cultura brasileira e mundial, já que muitas de suas obras jurídicas foram traduzidas ao italiano, espanhol, francês e inglês.

A FILOSOFIA

Resumir o universo numa fase
tão concisa e expressiva quanto exata
é a esperança renovada e ingrata
do filósofo desde a antiga fase.

De raciocínio fez-se uma colmeia
a maior construção da mente humana,
embora a abelha, em sua luta insana,
nunca veja a rainha das idéias.

Poesia de imagens desprovida,
quer penetrar no âmago do ser,
no jogo do que é ou deve ser.

Sua grandeza está na própria lida
e, quanto mais confiante se perscruta,
mais se volta a Platão e sua gruta.


Miguel Reale
in 'Sonetos da verdade'

VERDADE NATURAL

A volta ao natural que se aproxima
sem busca intencional da natureza
poderá devolver-nos a espontânea
existência das horas matutinas.

Tudo esquecido sob o pó do tempo
eis que desponta como o sol o faz
cada manhã, com seu calor de sempre,
a luz acariciando a flor dos olhos.

E por encanto, em movimento uno,
resplenderão as notas pequeninas
da criação: violetas e boninas.

Superado o recio do que é simples,
a verdade que mora em cada cousa
será como palavra numa lousa.


Miguel Reale
in 'Sonetos da verdade'

A MÚSICA

A tristeza maior de minha vida
é ser bem mais visual do que auditivo,
o que embaraça a união com a natureza
na comunhão das aves e dos ventos.

Sinto que a melodia me transcende
e não alcanço a música das coisas
como o artista converte em sinfonia
a linguagem efêmera das rosas.

A música interior eu a cultivo
e assumo, às vezes, pose de maestro
dirigindo os acordes da consciência.

Mas quando escuto embevecido Mozart
meu espírito adeja como asa
sobre o inefável canto do oceano.


Miguel Reale
in 'Sonetos da verdade'

LUZ INTEIROR

Não de luz, mas de sombra são meus versos,
humildes desajustados,
como quem vem de longe e se arreceia
de inesperado encontro.
A sombra é luz filtrada esmaecida
homóloga à vida interior reflexa
manso fluir de águas profundas
numa réstea de musgo e pedras brancas.
Não é à plena luz do sol a pino
mas quando ele se quebra no horizonte
que o espírito perplexo se inclina
e vê na sombra o que a luz lhe esconde.

Miguel Reale

A memória

Quando a existência chega a uma curva
que nada nos aponta no caminho
a glória conquistada fica turva,
a coroa ferindo mais que o espinho.

Ter saudade de erros e perigos
e até da injúria em horas desiguais,
é como repisar filmes antigos
sem gosto de viver tempos atuais.

O surpreendente em nossa trajetória
é percebermos, ao galgar um cume,
que só nos resta o espelho da memória.

Como é sombria essa luz do ocaso
quando a esperança toda se resume
no fruto amargo que nos der o Acaso!

Miguel Reale

A ALEGRIA

A alegria é uma asa
Sem o pássaro,
Uma chama que abrasa
Sem sopro.

A água corrente livre
Sem destino
Um chamado que se ouve
Sem o sino.

De repente ela chega
E é um manto estendido
Todo azul.

De repente ela some,
E é um canto disperso
Rumo ao sul.


Miguel Reale

E N F A D O



Há dias em que o corpo se dilui
na multidão amorfa de suas células
e os filetes da sensibilidade amortecida
perdem contato com outras vidas outros corpos
outros seres,
o cogumelo do enfado emergindo
do fundo das estranhas
como parasita das sombras.


Ser só na dispersão de si,
mancha de óleo se alongando
lentamente lentamente
sobre águas mortas de uma lagoa,
arvore reduzida a filigranas tênues de raízes
esparramadas pelos estratos superficiais
da terra gorda.


Ser só eu-espaço deliqüescente,
no tédio morno do tempo
plúmbeo
parado.



Miguel Reale
In: Poemas do Amor e do Tempo

O MURO

Resiste o velho paredão em ruínas,
já não é coisa, é uma lembrança
persistente e negra,
que a hera aperta em seu manto de esperança.


Mas se a planta tivesse coração,
e se abraçasse só por amizade,
largaria os tijolos . . . de piedade
abriria os seus ramos pelo chão.

Miguel Reale
In: Poemas do Amor e do Tempo

ALMAS VAZIAS

Oh, tu que em nada crês e nada esperas,
sozinho no deserto ou na cidade,
saberás um dia
que a esperança é a outra face da saudade!


Aquele ancião que saudoso se macera
arrastando seu corpo pela rua,
não trocaria,
estou certo,
a sua alma pela tua.

Miguel Reale
In: Poemas do Amor e do Tempo

P O L A R I D A D E

Do ingênuo ao trágico,
da confiança luminosa
às penumbras da melancolia
meu ser se polariza,
se adelgaça
e ranasce e se esvai.


Hoje a fruir os momentos que passam
com a jovial segurança
de um Senhor de Florença;
frio amanhã, soturno, ensimesmado,
a recolher migalhas do passado
sem fé, sem esperança,
na angustia de quem pensa
que é pensando que a vida se oferece,
rosa confiante se entregando ao sol.


Polaridade do existir, polaridade do pensar,
revolto mar da vida,
vida no revolto mar.

Miguel Reale
In: Poemas do Amor e do Tempo

VERDADE DISPERSA

No horizonte hibernal que já nos cerca
somos partículas em desamparo
nem sei como encontrar o centro, a vida,
em círculos de fogo desgarrados.

São círculos de esferas desunidas
com lágrimas de dor e orfandade,
um divórcio de nuvens e de estrelas
cada canto isolado de outro canto.

Procuramos em vão nossa verdade
estilhaçada em átomos de crença
água e ar em perpétua desavença.

São círculos de amor que se repelem
cada punhal afiado em pedra fria
desfeita em sombra quanto mais se afia.


Miguel Reale
in 'Sonetos da verdade'

A PROCURA

Tanto cuidei das coisas deste mundo
buscando para os outros um caminho
que me sinto perplexo e sem rumo
à espera de uma curva e de um ninho.

Em que pedra encostar minha cabeça
na ilusão do travesseiro fofo?
Feliz seria nunca mais ter pressa
fitando o perto e o longe do horizonte!

Talvez o velejar das tentativas,
buscando em vão um porto, seja o sino
que esperava escutar em emu destino,

mas que me vale a rosa azul dos ventos
nessa aventura pelo mundo afora
se minha sina só a percebo agora?

Miguel Reale
in 'Sonetos da verdade'

O SONO

Apago a luz e a sombra que se forma
Não me livra da luz que se apagou,
Uma insônia rebelde me persiste
Em desamor à sombra pela sombra.

O sono é forma de viver morrendo
E um ensaio que alimenta a vida,
A nossa morte humilde e cotidiana,
Na horizontalidade dos segundos.

A verdade do sono é um talismã
Que nos devolve, insensivelmente,
Ao mistério da planta e da semente.

Talvez seja esta a única vereda
Que nos conduz ao âmago do ser:
Ensimesmar-se para compreender.

Miguel Reale
in 'Sonetos da verdade'

A VELHICE

Não separe poesia da velhice
Pois cada idade tem sua a / ventura,
O que importa é o sentido que o amor
Vai recolhendo de nascente oculta.

Ai de quem envelhece sem ouvir
Fluindo em sim o rio da existência
Onde as idéias vêm pra se banhar
No batismo lustral do sentimento!

Altas horas da noite quando o além
Parece tão palpável como o sonho
É quando o escuro mais em claro ponho

E recomponho, como um cavaleiro
Errante, os castelos e as ermidas
Com que sonhei em minha longa vida.


Miguel Reale
in 'Sonetos da verdade'

O TEMPO

O pássaro do tempo solta o vôo
Existencial em todos os quadrantes,
Abrindo em leque risos e amarguras,
Na mesma escala para o amor e o ódio.

De curvo vôo como o do curiango
Ou de amplidão nas asas do condor
Traça no céu mensagens misteriosas
Desafiando a astúcia da razão.

Nesse vôo inconstante uma ironia:
Para prazer ou dor um só remédio,
O da mudança, ou a morte pelo tédio.

Até a alegria afinal nos cansa,
Mas o que deveras põe-se em calafrio
É o tempo insonso adiáforo vazio.


Miguel Reale
in 'Sonetos da verdade'

O DIA

Tão logo surge
Sinto que urge
Vencer o dia.
Que ousadia!

Não se adia
Essa ardente
Que às vezes unge,
Às vezes punge.

Cruzá-la rápido
Como um cavalo
Que é todo chama.

Vivê-lo cúpido
Como uma taça
Que se derrama



Miguel Reale
in 'Sonetos da verdade'

A VERDADE DO OUTRO

Eu já posso dormir do lado esquerdo
Que o velho coração não pulsa tanto
Nem mais ressoa tanto no meu peito
Que me obrigue a dormir do outro lado.

À medida que os anos vão passando
Compreendemos a força da igualdade
Sem saber se esta ou aquela a porta
Que vai tornar possível nosso encontro.

Ensimesmar-se é descobrir o outro
Embora sem com ele se encontrar
Como as ondas que rolam sobre o mar.

No mar da vida as ondas se sucedem
E todas elas são o mesmo oceano
Como as contradições do ser humano.

Miguel Reale
in 'Sonetos da verdade'

O Eu

Abismo em que me perco todo dia
Sempre à procura de meu ser disperso,
Reflexo do que passa pelo céu
Ou espelho exposto a todas as figuras.

Um centro vivo ou então periferia
Às vezes emergindo outras imerso
No que é dos outros ou no que é meu,
Dando sentido e nome às criaturas.

Barco perdido em meio à correnteza
Ou bússola marcando os horizontes,
Um sair e volver eternamente,

Novelo intumescido de incerteza
As chãs planícies e elevados montes,
Virtualidades todas da semente.

Miguel Reale